Escavações em Dona Francisca revelam o maior sítio arqueológico Guarani do Estado e recontam história dos povos indígenas na região

Escavações em Dona Francisca revelam o maior sítio arqueológico Guarani do Estado e recontam história dos povos indígenas na região

Fotos: Vinicius Becker (Diário)

Sob a terra avermelhada de Dona Francisca, município da Região Central, repousava parte da história dos povos indígenas que viviam na região há 1,5 mil anos. Foram as águas das enchentes, em maio do ano passado, que romperam esse silêncio milenar. Na época, a força da chuva trouxe à superfície fragmentos um tanto peculiares como pedaços de cerâmicas, peças com tintura característica dos povos indígenas e pedras incomuns. O que parecia apenas curiosidade logo se transformou em descoberta científica. Hoje, o local é reconhecido pelos pesquisadores como o maior sítio arqueológico da tribo Guarani já identificado no Rio Grande do Sul. As descobertas, em breve, também serão expostas em um museu.


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Logo após as enchentes, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) realizaram uma coleta emergencial de 600 peças. Uma das primeiras descobertas foi que o sítio já havia sido identificado em 1969 com o nome RS-MJ-60 – Albino Marzari. Agora, o trabalho dos arqueólogos tem sido analisar os artefatos recentes localizados na área do sítio e ampliar os resultados já consolidados. Quem coordena a ação é a produtora cultural Ariane Gassen Vargas que submeteu o projeto de pesquisa ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Natural de Dona Francisca, é umas das pesquisadoras envolvidas no estudo desde as primeiras idas a campo. 

– Hoje, está todo mundo trabalhando junto: agricultores, universidade, a minha empresa privada que elaborou o projeto para captar recursos, a prefeitura e a Câmara de Vereadores, que disponibilizou o espaço físico e aprovou a iniciativa. Acho que, em meio a toda aquela catástrofe climática, de tantas perdas, especialmente econômicas para a região e para os agricultores, tivemos também perdas culturais e históricas. Cada detalhe revelado por essa pesquisa arqueológica nos ajuda a compreender um pouco mais sobre quem somos – afirma Ariane.

A segunda etapa do trabalho, que iniciou neste ano, envolve uma pesquisa mais ampla e estruturada. Para isso, uma equipe foi contratada para as escavações. A arqueóloga responsável, Juliana Soares, comenta sobre o que encontrou na região:

Juliana é a arqueóloga responsável pela escavação

O sítio estava muito mais preservado do que imaginávamos. É uma ocupação bem antiga que temos aqui. O que encontramos agora vai servir como referência para novas pesquisas e comparações, ampliando muito o entendimento sobre as populações que viveram nesta região.


O passo a passo da escavação arqueológica

O primeiro passo é identificar as camadas de ocupação, caracterizadas por manchas pretas que sobressaem no tom mais avermelhado do solo na lavoura. Uma dessas áreas fica em um barranco, à beira do Rio Jacuí. A arqueóloga Juliana, que acompanhou a reportagem na visita ao campo, aponta para o local e explica que pode se tratar de uma área que despencou ou uma lixeira, usada para descartar os materiais. Uma vez identificado, o espaço é demarcado e a escavação, iniciada. Na medida em que o material é retirado, passa por uma grande peneira – utilizada para fragmentos menores como pedra lascada, pequenas lascas e sementes.

– Aqui dá para ver que estão visíveis peças de cerâmica – diz Juliana.

A arqueóloga segue mostrando a área da escavação e complementa:

– Quando evidenciamos o material, tiramos uma boa foto e fazemos o croqui. Com um instrumento específico, registramos a localização exata da escavação para depois conseguir fazer um relatório da área. Outros dados também são importantes como profundidade, grau de inclinação, enfim… Na escavação, nós destruímos o sítio, então, temos que coletar o máximo de dados.

Foi à beira do rio que encontraram a hematita, descrita pelos profissionais como uma espécie de minério de ferro, bastante raro. O mineral, até então, só existe no Alto Jacuí. Agora, análises mais detalhadas devem identificar a origem do material.


Em outro ponto da lavoura, outra camada de ocupação foi escavada. Lá, uma grande mancha preta se estende por cerca de 30 metros. De perto, é possível ver as camadas, que se alternam em tons de preto, marrom e cinza. É como se contasse a história de parte dessa terra, explica Juliana:

– O preto é toda a ocupação. São áreas que foram sendo reocupadas. Por isso, coletamos o carvão em vários níveis. E, acima, é o abandono. Quando a casa foi abandonada.

Ela explica, também, que a análise química do solo será fundamental para contar a história da área. O carvão encontrado são sinais de grandes fogueiras. Já a extensão da área indica que pode se tratar do fundo de uma grande casa, que servia de abrigo para mais de uma família.

– Nunca vi tanto carvão na minha vida, junto, em uma escavação arqueológica.


“É importante para a nossa história”, afirma proprietário da terra 

Daniel Marzari, 80 anos, mora há uma vida na propriedade da família no interior de Dona Francisca, que atualmente abriga o sítio arqueológico. Ele lembra que, desde a infância, encontrou fragmentos de cerâmica e outros objetos. Mas, sem imaginar tamanho valor científico, os materiais passavam despercebidos. É que, na época, faltava conhecimento sobre o assunto:

– Achávamos panelas, pedaços de cerâmica dura que até estragavam as ferramentas, mas acabávamos jogando no rio, porque não sabíamos o valor que aquilo podia ter. Era outro tempo, a gente não tinha informação nem sabia que isso fazia parte da nossa história – relata o morador.

Mazari acompanha de perto o trabalho dos arqueólogos

Nos últimos meses, o proprietário acompanha de perto o trabalho dos pesquisadores e reconhece a importância do que é feito ali. Por isso, conta que ajuda como pode, nem que seja com uma garrafa de água ou uma companhia durante as escavações.

– Tudo o que estiver ao nosso alcance, a gente vai colaborar. Acho que é importante para o município e para a nossa história. Essas pesquisas ajudam a entender quem viveu aqui antes de nós e mostram que essa terra tem muito mais memória do que a gente imaginava – destaca Marzari.


Os achados do sítio arqueológico: arqueólogos detalham objetos encontrados em Dona Francisca

Após o resgate emergencial do material, ocorrido logo depois das enchentes, a equipe de arqueologia realizou o tratamento das peças conforme as normas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Cada fragmento foi inventariado, analisado e recebeu um código específico para garantir o controle do patrimônio arqueológico.

– Cada pecinha que foi encontrada, já está mapeada e dentro do processo que abrimos junto ao Iphan para o reconhecimento e a identificação desse sítio arqueológico. É um material de pesquisa amplo.

O conjunto de materiais ainda será analisado em laboratório, mas já revela traços que ajudam a compreender o modo de vida dos povos indígenas que habitaram a região. Confira, abaixo, alguns materiais encontrados no sítio arqueológico. 

Os materiais encontrados foram catalogados e guardados, com cuidado, em cada uma das caixas


Cerâmicas

Entre os achados mais numerosos, estão os fragmentos de cerâmica. As peças corrugadas eram moldadas com pequenos roletes de argila, unidos e comprimidos com as mãos. Também foram identificadas cerâmicas lisas e outras com coloração ou acabamento mais refinado. Estima-se que eram usadas para servir as refeições.

O colorido das peças chama atenção pelos detalhes e resistência. Conforme a produtora cultural, os desenhos revelam a identidade e a espiritualidade dos povos guaranis. A origem de tons, como o branco, ainda será investigada.

– A origem da pintura branca não é bem definida ainda. Pode ser do solo ou de algum tipo de argila. Existem várias hipóteses para o uso da cor branca nas cerâmicas – pontua, enquanto mostrava de perto uma das peças encontradas – explica Ariane. 

Na imagem, cerâmicas do tipo corrugadas


Tembetá, um adorno indígena

Entre os objetos mais raros encontrados está o tembetá, um adorno utilizado pelos povos indígenas. Por serem delicados, costumam se fragmentar com o tempo, por isso, a peça encontrada em Dona Francisca é considerada rara. Os pesquisadores acreditam que o tembetá era usado em rituais de passagem, que marcaram a transição para a fase adulta.

– Provavelmente significava um rito de passagem. É raríssimo encontrar ele íntegro, assim. Geralmente está quebrado ou faltando um pedaço – frisa Ariane. 

O tembetá, em destaque na foto, é um adorno raro


Pedra lascada

Outro grupo de artefatos identificados é o das pedras lascadas, utilizadas por povos caçadores-coletores. Essas pedras funcionavam como ferramentas para afiar lanças e confeccionar objetos cortantes. Cada lasca preserva marcas deixadas pela ação humana, e com estudos mais aprofundados, devem revelar as técnicas utilizadas pelos povos indígenas. 


Calcedônia

Entre os materiais encontrados também está a calcedônia, uma pedra avermelhada e pontiaguda. Por suas características, os arqueólogos acreditam que eram utilizados como raspadores ou furadores. 


Outros achados

Além das cerâmicas, adornos e pedras, o levantamento também identificou uma boiadeira feita, provavelmente, de um minério chamado hematita – encontrado de forma inédita na região. 


Dona Francisca terá museu arqueológico com acervo encontrado no município

Dona Francisca está prestes a inaugurar um marco histórico: o primeiro museu arqueológico do município – que será berço dos achados e de pesquisa. O espaço, conforme Ariane, vai permitir a continuidade de estudos científicos sobre os povos originários da região.

– A ideia é que ele funcione como um centro de memória, de pesquisa e de educação. Também estamos criando a estrutura legal para uma Instituição de Guarda e Pesquisa, para que possamos continuar os estudos científicos com apoio do Iphan – afirma Ariane.

O museu será instalado no antigo auditório da Escola São Carlos, um prédio histórico do município que abrigou a primeira escola das Irmãs Palotinas da América do Sul. O espaço foi cedido pela prefeitura de Dona Francisca e passa por adequações para garantir acessibilidade, segurança e conservação do acervo.

Museu será instalado no prédio de uma antiga escola, na área central da cidade

A expectativa é de que o museu esteja pronto em 2026. A equipe de museologia já trabalha no plano museológico, na elaboração dos projetos de expografia, de engenharia e de arquitetura do espaço. A iniciativa é resultado de um projeto aprovado via edital da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) e será custeada com recursos do governo do Estado. A gestão e execução estão sob responsabilidade da arqueóloga e produtora cultural Ariane Gassen Vargas, em parceria com a prefeitura de Dona Francisca e o geoparque Quarta Colônia (Unesco).

O prefeito Saul Reck (Progressistas) e o secretário de Cultura, Luciano Kittel, que acompanham o andamento da instalação do museu, veem com bons olhos a iniciativa. Para eles, é uma forma de valorizar a história do município:

O prefeito de Dona Francisca acompanhou a reportagem durante a visita ao acervo do sítio arqueológico

– É um grande achado para a nossa cultura local. E, em breve, com o museu estruturado, podemos contagiar as pessoas para que possam explorar mais esse conhecimento, trazendo resultados e até fragmentos dessa civilização que hoje já não existe mais – disse o secretário de Cultura. 

Importância social

O museu pretende, também, ser um espaço de reconhecimento da presença indígena no território da Quarta Colônia.

– A nossa região tem um turismo muito voltado à imigração europeia, mas também precisamos reconhecer e valorizar os povos indígenas que já viviam aqui muito antes da colonização. Eles deixaram um legado lindo, que está presente em muitos aspectos da nossa vida: na alimentação, no chimarrão, nas expressões artísticas e culturais. Então, acredito que a Quarta Colônia pode contribuir nesse sentido, reconhecendo a presença indígena e promovendo um trabalho de educação, respeito e inclusão social. Precisamos rever nossa história. Ela não começa no período colonial. É muito anterior, e riquíssima – destaca Ariane.


Passo a passo para implantação do museu

  • Aprovação e execução do projeto: o projeto chamado de “Salvaguarda do Patrimônio Arqueológico da Quarta Colônia – Museu de Dona Francisca” foi contemplado pela Política Nacional Aldir Blanc (Pnab) do RS em fevereiro de 2025. Na data, foi iniciada a fase de execução que tem o prazo de 12 meses. No mesmo mês, o projeto foi apresentado aos gestores municipais e também ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão federal responsável pela preservação do patrimônio cultural do país.
  • Antiga Escola São Carlos vira sede do museu: em março de 2025, foi protocolado o termo de cessão do imóvel, o Subsolo da Antiga Escola São Carlos, que vai abrigar o Museu de Arqueologia.
  • Curadoria do acervo arqueológico: em abril de 2025, a equipe de arqueologia iniciou a curadoria do acervo, mantido sob a guarda da prefeitura municipal de Dona Francisca. Na ocasião, também foi realizada a catalogação das peças.
  • Câmara aprova a instalação do museu no prédio da Escola São Carlos: ainda em abril de 2025, a Câmara Municipal de Vereadores de Dona Francisca aprovou a instalação do museu no prédio histórico.
  • Entrega de relatório parcial ao Iphan: após análise das peças, a equipe arqueológica elaborou as fichas BAM (Bem Arqueológico Móvel). Em 28 de abril, o relatório parcial foi encaminhado à prefeitura municipal de Dona Francisca e ao Iphan.

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